A vida de um trabalhador
Ele sempre compra ovos de páscoa para suas crianças daquela fábrica que o vizinho da frente trabalha. Mas compra sempre do mais barato. Tem uns que custam mais caro que um dia de serviço do vizinho amigo. O sujeito tem que economizar dois meses para dar conta das despesas e dos ovos. Mas é sagrado. Na páscoa e no natal ele nunca falha com as crianças. São quatro filhos para presentear. No natal é sempre mais fácil por causa do décimo terceiro e da venda das férias. Dá até para agradar a patroa em casa e comprar uma rosa para a moça da lanchonete da firma, que é terceirizada, trabalha de domingo a domingo quase sem folga, mas sempre sorri para ele. Na páscoa os ovos são iguais para todo mundo, mas no natal os presentes variam de acordo com a idade e o gênero de cada criança, baseado nas propagandas do intervalo dos programas infantis.
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Imagem da Internet |
Ele gosta do patrão, talvez seja o único da fábrica
que gosta. E é de coração que gosta. Gosta das histórias
que o patrão conta, de quando era da marinha, antes de se aposentar e
investir na fábrica promissora. Mas ele gosta também quando o patrão
viaja com a família, porque os gerentes ficam “mais gente boa”. Ele também
gosta dos colegas. Ele só tem um pouco de pé
atrás
com os do sindicato. Eles dizem que o pessoal da fábrica é
explorado. Que eles trabalham o suficiente para o patrão pagar os
impostos, a matéria prima, os salários deles e ainda ganhar para ele mais
do que ganha com a aposentadoria da marinha. Dizem que na verdade eles é
que pagam ao patrão. Ele não concorda, acha o patrão
generoso. Penou muito para arrumar esse emprego, quase passou fome. Mas ele
gosta de todo mundo no trabalho e também é muito querido.
Fora o trabalho, que lhe ocupa 13 horas do dia entre o
deslocamento de casa ao trabalho e a jornada de 13 horas com uma de almoço,
ele, quase todos os dias, joga sinuca e escuta músicas de Belchior no boteco da rua
durante uma hora, além das tardes de domingos e feriados
quando não faz hora extra. Na verdade, ele gosta mais da música
e das poucas doses de cachaça que toma do que da sinuca. Como não
é
muito bom, sempre perde de primeira e tem que esperar uma rodada inteira de
amigos perderem para jogar de novo. Se tivesse uma mesa de sinuca em casa, como
o patrão, rapidinho eu ficava bom - pensava. Por vezes, durante a
hora que passa no boteco, só consegue jogar uma vez e passa o
restante do tempo ouvindo os discos de Belchior que o português
dono do bar repete todos os dias. O público do pequeno bar é
engraçado. Ao redor da mesa velha de sinuca de ficha, o motorista de
camisa celeste e gravata marinho, o garçom de camisa branca e gravata preta, o
mecânico
coberto de graxa, o pedreiro de chinelo e pés rachados, o vigilante de roupa de
soldado e arma na cintura, os dois irmãos bombados que trabalham descarregando
caminhões e não bebem com os amigos porque jogam
sinuca antes do serviço, que é durante a noite, além
do ex advogado, que virou alcoólatra e é sustentado pela esposa, o melhor
jogador de sinuca dentre todos.
Ele nunca entendera porque o dono do boteco ouvia música
brasileira. O patrão quando falava de suas viagens pelo mundo, sempre dizia que
no estrangeiro as coisas são melhores. Já não
bastava ele sair da Europa para ter um pequeno boteco na periferia, longe do
litoral, ainda ouvia aquele cantor de versos tristes. “Eu sou apenas um
rapaz latino americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo
do interior”, que graça tem isso para um gringo? Essa parecia
mais ser a história dele. “Sentado à beira do caminho pra pedir carona”,
fazia ele lembrar de quando foi ao interior para o velório de uma
parente e foi assaltado na volta. Isso é a minha vida, não é
bonito – pensava ele. Estranho para ele um cantor tão
famoso que falava da vida de gente pobre. Parece que não acostumou a
ser rico. Ele se perguntava como um cantor tão importante poderia sumir do mapa, das
revistas, da TV. Ele, se tivesse dinheiro, ia querer uma vida igual à
do povo da novela que passa depois do Jornal Nacional. Aquilo sim é
que é vida. Parecido com a vida do patrão. Que sortudo
ele.
Ele sai do bar e vai para casa tomar banho, jantar e dormir.
Sempre antes de pegar no sono, conversa alguns instantes com a esposa. Pergunta
sobre a escola e a saúde dos filhos. Não dá
conta de acompanhar. A esposa é quem cuida dessa parte, já
que ela tem mais tempo. Ela trabalha em casa, costurando para aquela grife bem
chique que só vende no Shopping do Centro. Para ter uma ideia, uma saia ou
uma calça da que ela faz custa mais do que ela ganha em uma semana. E
olha que ela recebe por cada peça e trabalha muito! Tanto que paga a
vizinha para ajudar a cuidar da casa e das crianças. Foi uma benção quando ela
pegou essas peças para fazer de uma fábrica que trabalha terceirizada para a
grife.
Essa semana ele aproveitou para curtir com a esposa e os
amigos. O final de semana foi prolongado. Na sexta teve greve contra umas
reformas que ele não entende muito bem. Afinal, se é “reforma” é bom, né? O patrão diz a ele que vai ser bom, que vai
melhorar o trabalho. Na TV ele também viu dizendo que é
bom. Já o pessoal do sindicato diz que é ruim, que as coisas vão
ficar piores. O patrão usa a si próprio como
exemplo, porque mesmo depois de aposentado na Marinha continua trabalhando. Ele
tomou sua decisão. Não foi trabalhar na sexta para não
arrumar problemas com o pessoal do sindicato, mas também não
foi para o protesto para não ter confusão com o patrão.
Aproveitou a sexta para levar os filhos à casa dos avós. No sábado
levou a esposa ao shopping do Centro para ver as vitrines e ver o novo lançamento
de Hollywood no cinema. No domingo foi ao estádio com os amigos do boteco, do trabalho
e do sindicato assistir a final do campeonato estadual.
Por fim, todos pegaram
suas esposas e foram à comemoração do Dia do Trabalhador, que teve uma
homenagem a Belchior, que morrera na madrugada anterior. Lá
ouviu aquelas músicas, que ele não entendia porque falavam da vida dele. “Que
graça
tem minha vida? Por que alguém cantaria sobre isso?”
Sentia vontade de chorar, diferente do que sentia quando via as novelas. Entre
os copos de cerveja e os beijos na esposa ele se flagrava pensando na moça
da lanchonete sempre que alguém dizia “Viva ao Primeiro de Maio”.
Afinal, ela trabalha tanto. Talvez ele devesse dar ela uma rosa também
nessa data.
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