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A vida de um trabalhador


Ele sempre compra ovos de páscoa para suas crianças daquela fábrica que o vizinho da frente trabalha. Mas compra sempre do mais barato. Tem uns que custam mais caro que um dia de serviço do vizinho amigo. O sujeito tem que economizar dois meses para dar conta das despesas e dos ovos. Mas é sagrado. Na páscoa e no natal ele nunca falha com as crianças. São quatro filhos para presentear. No natal é sempre mais fácil por causa do décimo terceiro e da venda das férias. Dá até para agradar a patroa em casa e comprar uma rosa para a moça da lanchonete da firma, que é terceirizada, trabalha de domingo a domingo quase sem folga, mas sempre sorri para ele. Na páscoa os ovos são iguais para todo mundo, mas no natal os presentes variam de acordo com a idade e o gênero de cada criança, baseado nas propagandas do intervalo dos programas infantis.

Imagem da Internet
Com os feriados de comprar presente tão próximos um do outro, no carnaval nunca dá para viajar. Sendo assim, o casal bota os filhos para visitar os avós e se dá ao luxo de trocar o dia pela noite assistindo os desfiles das escolas de samba do Rio e de São Paulo onde eles nunca estiveram na TV. Ele gosta de ver a esposa sambando nua, ela gosta de vê-lo bêbado no carnaval. Cervejas e safadeza no Anhembi e na Sapucaí sem sair de casa. Ele até tem vontade de conhecer a praia, mas seu estado não fora agraciado com o mar. Só sabe como é a praia pela TV e pelas fotos do litoral do Nordeste que o patrão sempre mostra depois das viagens.

Ele gosta do patrão, talvez seja o único da fábrica que gosta. E é de coração que gosta. Gosta das histórias que o patrão conta, de quando era da marinha, antes de se aposentar e investir na fábrica promissora. Mas ele gosta também quando o patrão viaja com a família, porque os gerentes ficam mais gente boa. Ele também gosta dos colegas. Ele só tem um pouco de pé atrás com os do sindicato. Eles dizem que o pessoal da fábrica é explorado. Que eles trabalham o suficiente para o patrão pagar os impostos, a matéria prima, os salários deles e ainda ganhar para ele mais do que ganha com a aposentadoria da marinha. Dizem que na verdade eles é que pagam ao patrão. Ele não concorda, acha o patrão generoso. Penou muito para arrumar esse emprego, quase passou fome. Mas ele gosta de todo mundo no trabalho e também é muito querido.

Fora o trabalho, que lhe ocupa 13 horas do dia entre o deslocamento de casa ao trabalho e a jornada de 13 horas com uma de almoço, ele, quase todos os dias, joga sinuca e escuta músicas de Belchior no boteco da rua durante uma hora, além das tardes de domingos e feriados quando não faz hora extra. Na verdade, ele gosta mais da música e das poucas doses de cachaça que toma do que da sinuca. Como não é muito bom, sempre perde de primeira e tem que esperar uma rodada inteira de amigos perderem para jogar de novo. Se tivesse uma mesa de sinuca em casa, como o patrão, rapidinho eu ficava bom - pensava. Por vezes, durante a hora que passa no boteco, só consegue jogar uma vez e passa o restante do tempo ouvindo os discos de Belchior que o português dono do bar repete todos os dias. O público do pequeno bar é engraçado. Ao redor da mesa velha de sinuca de ficha, o motorista de camisa celeste e gravata marinho, o garçom de camisa branca e gravata preta, o mecânico coberto de graxa, o pedreiro de chinelo e pés rachados, o vigilante de roupa de soldado e arma na cintura, os dois irmãos bombados que trabalham descarregando caminhões e não bebem com os amigos porque jogam sinuca antes do serviço, que é durante a noite, além do ex advogado, que virou alcoólatra e é sustentado pela esposa, o melhor jogador de sinuca dentre todos.

Ele nunca entendera porque o dono do boteco ouvia música brasileira. O patrão quando falava de suas viagens pelo mundo, sempre dizia que no estrangeiro as coisas são melhores. Já não bastava ele sair da Europa para ter um pequeno boteco na periferia, longe do litoral, ainda ouvia aquele cantor de versos tristes. Eu sou apenas um rapaz latino americano sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior, que graça tem isso para um gringo? Essa parecia mais ser a história dele. Sentado à beira do caminho pra pedir carona, fazia ele lembrar de quando foi ao interior para o velório de uma parente e foi assaltado na volta. Isso é a minha vida, não é bonito pensava ele. Estranho para ele um cantor tão famoso que falava da vida de gente pobre. Parece que não acostumou a ser rico. Ele se perguntava como um cantor tão importante poderia sumir do mapa, das revistas, da TV. Ele, se tivesse dinheiro, ia querer uma vida igual à do povo da novela que passa depois do Jornal Nacional. Aquilo sim é que é vida. Parecido com a vida do patrão. Que sortudo ele.

Ele sai do bar e vai para casa tomar banho, jantar e dormir. Sempre antes de pegar no sono, conversa alguns instantes com a esposa. Pergunta sobre a escola e a saúde dos filhos. Não dá conta de acompanhar. A esposa é quem cuida dessa parte, já que ela tem mais tempo. Ela trabalha em casa, costurando para aquela grife bem chique que só vende no Shopping do Centro. Para ter uma ideia, uma saia ou uma calça da que ela faz custa mais do que ela ganha em uma semana. E olha que ela recebe por cada peça e trabalha muito! Tanto que paga a vizinha para ajudar a cuidar da casa e das crianças. Foi uma benção quando ela pegou essas peças para fazer de uma fábrica que trabalha terceirizada para a grife.

Essa semana ele aproveitou para curtir com a esposa e os amigos. O final de semana foi prolongado. Na sexta teve greve contra umas reformas que ele não entende muito bem. Afinal, se é reforma é bom, né? O patrão diz a ele que vai ser bom, que vai melhorar o trabalho. Na TV ele também viu dizendo que é bom. Já o pessoal do sindicato diz que é ruim, que as coisas vão ficar piores. O patrão usa a si próprio como exemplo, porque mesmo depois de aposentado na Marinha continua trabalhando. Ele tomou sua decisão. Não foi trabalhar na sexta para não arrumar problemas com o pessoal do sindicato, mas também não foi para o protesto para não ter confusão com o patrão. Aproveitou a sexta para levar os filhos à casa dos avós. No sábado levou a esposa ao shopping do Centro para ver as vitrines e ver o novo lançamento de Hollywood no cinema. No domingo foi ao estádio com os amigos do boteco, do trabalho e do sindicato assistir a final do campeonato estadual.

Por fim, todos pegaram suas esposas e foram à comemoração do Dia do Trabalhador, que teve uma homenagem a Belchior, que morrera na madrugada anterior. Lá ouviu aquelas músicas, que ele não entendia porque falavam da vida dele. Que graça tem minha vida? Por que alguém cantaria sobre isso? Sentia vontade de chorar, diferente do que sentia quando via as novelas. Entre os copos de cerveja e os beijos na esposa ele se flagrava pensando na moça da lanchonete sempre que alguém dizia Viva ao Primeiro de Maio. Afinal, ela trabalha tanto. Talvez ele devesse dar ela uma rosa também nessa data.




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