Crônica: O Sertanejo
Acender
vela e rezar é de praxe; Seja pela família ou pela chuva, mas liturgia mesmo é
lembrar-se de tudo o que seu Padre Cícero costumava dizer. Mãe, tia, irmã, avó.
Mulher guerreira. Criada num lugar onde os rios e açudes lhe traziam alegria,
porém sempre foram temporários, no entanto, quem disse que a alegria passava
também? É mais fácil alguém se perguntar de onde surge tanta coragem para
enfrentar essa vida, as velas uma hora se apagam e as águas secam na maior
parte dos anos, mas é nesse sertão que a força permanece.
Seus olhos castanhos acompanharam o
desenvolvimento das vastas terras em que mora, a tecnologia e a educação
estavam começando a alcançar o seu lugar. Ainda lhe é possível recordar os pés
descalços das crianças que andavam quilômetros a pé para a escola, como os
sertanejos que Lobato caracterizava em seus livros. Ah, o sertão! Há quem diga
que o sertão é terra amada, outros dizem ser castigada, isso ela nunca separou,
na sua humilde concepção um complementa o outro, de forma que não é possível
amar o castigo, mas é possível aprender com ele e assim amar seus ensinamentos.
Mas qual é esse castigo?
Ah!
A seca. A seca é castigo? Para uns sim, para outros apenas consequência de quem
resolveu viver onde ela já predominava, era o que ela ouvia seu pai dizer. Pai
agricultor, de pele manchada pelo sol, que nunca deixava faltar o que comer,
mesmo com tantas bocas para alimentar. Homem de coragem. Coragem passada de
geração, coragem era a herança, herança que sustentou e continua a sustentar muitos
sertanejos. Isso ela podia notar.
Aprendeu
a tricotar com a mãe, quem acredita que a espera no paraíso junto a seu pai. Não
supõe que lhe resta viver muitos anos, mas é grata por tudo que já viveu e
ainda vive. Ela está em paz, filhos bem encaminhados e assim encaminhando os
seus netos. A família é o seu orgulho. Eles estão prontos para a vida e isso
lhe faz estar pronta para a morte. Para voar como a Asa Branca.
Há
uma tristeza que lhe assola o coração, a retratação do seu sertão pelos mais
importantes telejornais, concordava que por vezes apenas a fome, seca e
sofrimento predominavam. Mas houve mudança. Como ela não pode mostrar isso ao
país ou ao mundo, só lhe resta esperar que quem pode assim o faça, e ela
espera. Uma vez ouviu dizer que a África é linda, logo pediu pra ver umas fotos
pelo celular da neta mais nova e chegou à conclusão de que os africanos também
têm dificuldades de mostrarem a beleza de sua gente e de sua terra para o
mundo, porém isso nunca a impediu de assistir aos jornais, só a faz ansiar que
eles venham mostrar o que ela e muitos do seu tempo viram mudar, já que outra
coisa da qual se orgulha é da transformação. Transformação essa que veio com os avanços das tecnologias de irrigação, o
agronegócio fez com que muitas oportunidades de trabalho surgissem para o seu
povo.
A maior parte do
Nordeste é composta pelo Sertão. Como as chuvas são irregulares isso a faz
lembrar-se da importância do São Francisco. Ah, o Velho Chico! Ela que
acompanhou a transposição das águas do rio com medo de dar errado, mas torceu e
continua torcendo para que continue dando certo, e que suas águas abençoem esse
povo que por muito tempo sofreu com a caatinga.
Ela
enxerga beleza na sua cultura, que é poesia, São João, forró, xaxado, cordel,
repente, muita moda de viola e sanfona. Por isso nosso povo é alegre –
acredita. Sempre procurou ensinar aos seus descendentes, que a pobreza do
sertão sempre foi exemplo de que isso não é sinônimo de roubo ou violência, mas
acrescenta também que a questão está diretamente ligada à transmissão de fé,
que na falta de educação virava a educação.
Sim,
é um povo que sempre orou. Orou por chuva. Ela mesma já pagou muitas promessas
e faz outras na esperança de que chova, afinal, veio de uma família que
encontra na fé uma esperança e sentido para a vida. Por isso, todos os dias ela toma seu café as cinco da tarde e reza o
terço às seis, se nesse horário algum dos filhos, filhas, netas ou netos
estiverem ao lado têm que lhe pedir a benção. É sagrado. Interessante mesmo é
que ainda que não chova ela vai esperar Deus mandar a chuva mais cedo ou mais
tarde, como todo bom sertanejo que de Deus jamais reclama, pode o gado morrer,
como cantou Luiz Gonzaga, ou seu problema cardiorrespiratório piorar, ela tem
convicção de que a água vai cair do céu assim que o “Mandacaru florar na seca”.
Ela não quer acreditar que se as coisas continuarem como
estão, nos anos futuros os sertanejos terão que passar por um processo de
migração, ela prefere crer que assim como suas plantas são adaptadas às temperaturas
elevadas da região e a rápida evaporação da água das chuvas, o povo vai
continuar fazendo o mesmo, lutando por sua terra, sendo forte e guerreiro.
Enquanto se balança na sua cadeira preferida assistindo as
amadas novelas, ela guarda consigo as personagens que vê, mas sabe que a sua
vida daria uma narrativa muito melhor. Pelo fato de ser real. E por isso ela é
grata, pela vida que considera dom, pelos sorrisos que superaram as tristezas
em sua maioria, pelos banhos de chuva, rios e açudes, pelas brincadeiras nós
pés de manga e Umbu. Por crescer. Crescendo ela conseguiu ajudar o esposo a
sustentar a casa com seu artesanato. Tricotar sempre foi sua paixão, e foi
trabalhando com paixão que sua arte vendeu.
Sentar na calçada da sua pequena cidade, conversar com os
vizinhos, ligar para os filhos que moram distante, cozinhar, pedir para um neto
lhe mostrar vez ou outra algo da internet, assistir novelas e telejornais, são
poucos os programas de entretenimento que ainda lhe atraem. Ser simpática, mas
quando necessário usar a rigidez. Em tudo pedir a sabedoria divina. Essas são
coisas pelas quais ela acredita que um jovem abusaria fácil em seu cotidiano,
mas que ela não viveria sem, então lembra que ultimamente não tem chovido, não
é novidade, então ela diz “se Deus quiser esse mês vai chover”, logo, acende
outra vela e continua a rezar.
Por Mayara Oliveira
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