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Crônica: O Sertanejo

Acender vela e rezar é de praxe; Seja pela família ou pela chuva, mas liturgia mesmo é lembrar-se de tudo o que seu Padre Cícero costumava dizer. Mãe, tia, irmã, avó. Mulher guerreira. Criada num lugar onde os rios e açudes lhe traziam alegria, porém sempre foram temporários, no entanto, quem disse que a alegria passava também? É mais fácil alguém se perguntar de onde surge tanta coragem para enfrentar essa vida, as velas uma hora se apagam e as águas secam na maior parte dos anos, mas é nesse sertão que a força permanece.


Imagem: Sebastião Salgado

 Seus olhos castanhos acompanharam o desenvolvimento das vastas terras em que mora, a tecnologia e a educação estavam começando a alcançar o seu lugar. Ainda lhe é possível recordar os pés descalços das crianças que andavam quilômetros a pé para a escola, como os sertanejos que Lobato caracterizava em seus livros. Ah, o sertão! Há quem diga que o sertão é terra amada, outros dizem ser castigada, isso ela nunca separou, na sua humilde concepção um complementa o outro, de forma que não é possível amar o castigo, mas é possível aprender com ele e assim amar seus ensinamentos. Mas qual é esse castigo?

Ah! A seca. A seca é castigo? Para uns sim, para outros apenas consequência de quem resolveu viver onde ela já predominava, era o que ela ouvia seu pai dizer. Pai agricultor, de pele manchada pelo sol, que nunca deixava faltar o que comer, mesmo com tantas bocas para alimentar. Homem de coragem. Coragem passada de geração, coragem era a herança, herança que sustentou e continua a sustentar muitos sertanejos. Isso ela podia notar.

Aprendeu a tricotar com a mãe, quem acredita que a espera no paraíso junto a seu pai. Não supõe que lhe resta viver muitos anos, mas é grata por tudo que já viveu e ainda vive. Ela está em paz, filhos bem encaminhados e assim encaminhando os seus netos. A família é o seu orgulho. Eles estão prontos para a vida e isso lhe faz estar pronta para a morte. Para voar como a Asa Branca.

Há uma tristeza que lhe assola o coração, a retratação do seu sertão pelos mais importantes telejornais, concordava que por vezes apenas a fome, seca e sofrimento predominavam. Mas houve mudança. Como ela não pode mostrar isso ao país ou ao mundo, só lhe resta esperar que quem pode assim o faça, e ela espera. Uma vez ouviu dizer que a África é linda, logo pediu pra ver umas fotos pelo celular da neta mais nova e chegou à conclusão de que os africanos também têm dificuldades de mostrarem a beleza de sua gente e de sua terra para o mundo, porém isso nunca a impediu de assistir aos jornais, só a faz ansiar que eles venham mostrar o que ela e muitos do seu tempo viram mudar, já que outra coisa da qual se orgulha é da transformação. Transformação essa que veio com os avanços das tecnologias de irrigação, o agronegócio fez com que muitas oportunidades de trabalho surgissem para o seu povo.

 A maior parte do Nordeste é composta pelo Sertão. Como as chuvas são irregulares isso a faz lembrar-se da importância do São Francisco. Ah, o Velho Chico! Ela que acompanhou a transposição das águas do rio com medo de dar errado, mas torceu e continua torcendo para que continue dando certo, e que suas águas abençoem esse povo que por muito tempo sofreu com a caatinga.
Ela enxerga beleza na sua cultura, que é poesia, São João, forró, xaxado, cordel, repente, muita moda de viola e sanfona. Por isso nosso povo é alegre – acredita. Sempre procurou ensinar aos seus descendentes, que a pobreza do sertão sempre foi exemplo de que isso não é sinônimo de roubo ou violência, mas acrescenta também que a questão está diretamente ligada à transmissão de fé, que na falta de educação virava a educação.

Sim, é um povo que sempre orou. Orou por chuva. Ela mesma já pagou muitas promessas e faz outras na esperança de que chova, afinal, veio de uma família que encontra na fé uma esperança e sentido para a vida. Por isso, todos os dias ela toma seu café as cinco da tarde e reza o terço às seis, se nesse horário algum dos filhos, filhas, netas ou netos estiverem ao lado têm que lhe pedir a benção. É sagrado. Interessante mesmo é que ainda que não chova ela vai esperar Deus mandar a chuva mais cedo ou mais tarde, como todo bom sertanejo que de Deus jamais reclama, pode o gado morrer, como cantou Luiz Gonzaga, ou seu problema cardiorrespiratório piorar, ela tem convicção de que a água vai cair do céu assim que o “Mandacaru florar na seca”.

Ela não quer acreditar que se as coisas continuarem como estão, nos anos futuros os sertanejos terão que passar por um processo de migração, ela prefere crer que assim como suas plantas são adaptadas às temperaturas elevadas da região e a rápida evaporação da água das chuvas, o povo vai continuar fazendo o mesmo, lutando por sua terra, sendo forte e guerreiro.

Enquanto se balança na sua cadeira preferida assistindo as amadas novelas, ela guarda consigo as personagens que vê, mas sabe que a sua vida daria uma narrativa muito melhor. Pelo fato de ser real. E por isso ela é grata, pela vida que considera dom, pelos sorrisos que superaram as tristezas em sua maioria, pelos banhos de chuva, rios e açudes, pelas brincadeiras nós pés de manga e Umbu. Por crescer. Crescendo ela conseguiu ajudar o esposo a sustentar a casa com seu artesanato. Tricotar sempre foi sua paixão, e foi trabalhando com paixão que sua arte vendeu.

Sentar na calçada da sua pequena cidade, conversar com os vizinhos, ligar para os filhos que moram distante, cozinhar, pedir para um neto lhe mostrar vez ou outra algo da internet, assistir novelas e telejornais, são poucos os programas de entretenimento que ainda lhe atraem. Ser simpática, mas quando necessário usar a rigidez. Em tudo pedir a sabedoria divina. Essas são coisas pelas quais ela acredita que um jovem abusaria fácil em seu cotidiano, mas que ela não viveria sem, então lembra que ultimamente não tem chovido, não é novidade, então ela diz “se Deus quiser esse mês vai chover”, logo, acende outra vela e continua a rezar.


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